POIS É

POIS É
A verdade pode durar uma vida inteira, perseguir uma mulher madura, assaltada de lembranças provocadas por uma amiga que mexe com uma varinha "o fundo lodoso da memória".
E, de repente, a avó percebe uma convulsão na sua realidade, porque de repente outra verdade se sobrepõe.
Explica.
Reduz.
E ao mesmo tempo amplia.
Pois é.
A verdade, em Lygia Fagundes Telles, é tão crua quanto esclarecedora.
O que está em seus contos é a vida, sua própria e de outros, tão real e tátil como o chão áspero de cimento.
Reli, com assombro renovado, seu Papoulas em feltro negro, que ela incluiu no livro "Meus contos preferidos".
Em onze páginas, Lygia roteiriza, organiza, sumariza, romantiza, anarquiza e enfim suaviza e cicatriza uma vida inteira.
Ojeriza.
Fuga.
Medo.
Ansiedade.
Mentira.
Não foi sem intenção que a narrativa das memórias suscitadas por um telefonema se concentre na latrina do colégio.
Era o ponto da tangência.
O ponto da fuga.
A casinha fedorenta era melhor do que a sala de aula, com aquela presença esmagadora, opressora da professora castradora.
Mentira! Tão bem dissimulada que pareceu verdade, por cinqüenta anos.
E a verdade, um dia, lhe atinge a face como a aba de um chapéu de feltro, ornado de papoulas desmaiadas.
A memória é sinestésica.
E os elementos formais estão ali, polvilhados no conto de Lygia, a declarar a ação dos sentidos.
O tato da memória traz a aspereza do giz, o suor das mãos, o pé que esfrega a mancha queimada de cigarro no tapete.
A audição da memória pede que se repita a Valsa dos Patinadores, como se repetiu a lembrança pela voz da companheira sessenta e oito, da escola primária.
Mas o cheiro da memória remete, primeiro, a urina.
A latrina escura.
E eis a visão da memória a denunciar a obliteração.
Negro quadro-negro.
Trança negra.
Saia negra.
Feltro negro.
No meio do negrume, o sol reflete o seu fulgor majestoso na vidraça.
É o esplendor do flagrante descobrimento.
"O sol incendiava os vidros e ainda assim adivinhei em meio do fogaréu da vidraça a sombra cravada em mim." Dissimulação - mesmo em meio a tanta luz, há uma sombra.
É uma sombra que persegue a personagem até o reencontro com a professora.
Sombra, por definição, é uma imagem sem contornos nítidos, sem clareza.
Como a professora, morta-viva, "invadindo os outros, todos transparentes, meu Deus! " E Deus, que sombra é esta a que chamamos Deus?
Pois é.
Neste conto de Lygia, o gosto da memória, ou a memória do gosto, está ausente.
Não se manifesta o sabor.
Por que não se manifestou o saber, é por isso?
O conto é partícula de vida.
É meio primo da História.
Mais do que eventos, registra caráter, caracteres, costumes, clima, ambiente, formas, cores, preferências, gostos.
O conto é uma das modalidades da história feita arquivo.
Por isso conto, contas, contamos.
O conto oral é o livro em potência, a história em potência.
Ambos pertencem a quem os usa, e a quem de seus exemplos faz uso.
A escola deve ensinar a ler.
Mas também deve ensinar a ouvir.
Por isso, também na escola, que é um complemento da família, é preciso haver quem conte histórias.
Como Lygia, que nos faz lembrar que é preciso haver a lembrança de uma infância vivida, o acalanto de uma voz querida, contando histórias, ilustrando a vida.
Lygia é de uma franqueza pontiaguda.
Este conto, em especial, é uma escancarada confissão de humanidade.
A personagem é Lygia, ou qualquer um de nós.
A personagem é frágil.
Conquanto pensasse, a vida inteira, que era forte.
Imaginava-se executora.
Conquanto pensasse, a vida inteira, que era executada.
Humana, enfim.
Eis a verdade.
Eis Lygia.
Pois é.
Jornal das Letras, edição de agosto de 2007

#gabrielchalita#menina#madura 215

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