ENCONTRO COM A PALAVRA
ENCONTRO COM A PALAVRA
"Aqui jaz Fernando Sabino.
Nasceu homem, morreu menino".
A frase poética escolhida pelo autor de "O Encontro Marcado" para a sua lápide expõe de maneira sucinta, mas explícita, um pouco da personalidade, dos desejos e anseios de um protagonista da palavra.
Um autor cuja pena produziu, desde a mais tenra juventude, textos fundamentados na sensibilidade capaz de captar a angústia humana como poucos de sua geração souberam fazer.
Sobre ele, um dos maiores críticos literários brasileiros, Antonio Cândido, avalia: "Fernando tinha um olhar infalível para os pormenores expressivos e uma capacidade prodigiosa de invenção verbal".
Com a morte de Sabino, encerra-se um tempo singular que, por um desses desígnios inexplicáveis, teve o mérito de reunir, em uma mesma época e em um mesmo cenário - a cidade de Belo Horizonte -, o famoso quarteto de escritores mineiros composto por Sabino e pelos amigos Hélio Pellegrino, Otto Lara Resende e Paulo Mendes Campos.
Sabino foi o único dos quatro a chegar aos 80 anos.
O único a sentir a ausência corrosiva provocada pela perda das grandes amizades.
Suas dezenas de romances, crônicas, novelas, correspondências e relatos de viagem trazem em sua essência o cerne de um dom raro: o de fazer dessas histórias uma ponte entre a ficção e a reflexão.
Um elo entre o eu e o outro.
Entre o particular e o universal.
A narrativa de Sabino instiga os leitores à realização de uma busca rumo ao autoconhecimento - virtude característica dos grandes mestres da palavra.
Foi assim com o personagem Eduardo Marciano que, desde 1956, com a publicação de "O Encontro Marcado", prossegue arrebatando corações e mentes.
A escrita fluente e a leveza que dava a textos de temáticas muitas vezes angustiantes nasciam de um cuidado extremista de Sabino com a palavra.
O mesmo que dedicou à música.
Eclético, como todos que possuem espírito inquieto, Sabino era baterista de uma banda de jazz - estilo caracterizado pelo predomínio do improviso sobre a técnica.
Assim também era Sabino na literatura: artista cujo compasso ritmado era marcado pela junção da técnica e da sensibilidade.
A perda do escritor mineiro já seria motivo suficiente para que o reino das palavras ostentasse luto por prazo indefinido.
Entretanto, dois dias antes, o mundo das letras, da filosofia, do pensamento dava adeus ao filósofo Jacques Derrida, famoso pela teoria da "desconstrução", cujo princípio era desfazer o texto do modo que foi previamente organizado para revelar significados ocultos.
Suas pesquisas apontavam que, tanto na literatura como nas demais formas de arte, é possível observar - por meio de análises detidas - numerosas camadas de significados não necessariamente planejados pelo criador da obra.
Assim como Sabino, Derrida era o único sobrevivente de um grupo ímpar de personagens que ajudaram a compor a história de uma geração.
Juntos, Althusser, Barthes, Deleuze, Foucault, Lacan e Derrida tornaram-se conhecidos como "os pensadores de 1968".
Desde então, o filósofo contribuiu sobremaneira para o entendimento de questões essenciais à compreensão do século 20.
O autor de "Espectros de Marx" não se furtava, mesmo já muito doente, o direito de viajar pelos continentes lançando luzes sobre temas variados e polêmicos como a literatura, a política, a ética, os conflitos árabe-israelenses, a luta contra o aparthaid, os últimos atentados em solo americano, a rapidez dos processos tecnológicos.
Derrida era um cidadão do mundo, um homem que viveu apaixonadamente e defendeu sua ideologia e seus propósitos de todos os modos.
A justiça, os direitos humanos, a conquista da cidadania e a dignidade da pessoa humana eram, invariavelmente, bandeiras que empunhava em favor da edificação de um tempo mais pacífico e igualitário para povos e nações.
Foi ele, também, o criador, em 1983, do Colégio Internacional de Filosofia, a que presidiu até 1985.
Sem dúvida, as vidas de Sabino e de Derrida são exemplos de entusiasmo e de dedicação.
Convites a uma existência mais pró-ativa, passional, conectada à nossa verdade interior e à procura da felicidade individual que se expande para o coletivo.
Foram-se dois grandes homens.
Ficam duas grandes lições.
Que todos tenhamos sabedoria para apreender os ensinamentos que deixaram em seus livros e que os manterá, para sempre, vivos.
Afinal, como afirmou Derrida em uma das tantas entrevistas que concedeu: "(…) a vida é sobrevida.
Sobreviver no sentido corrente quer dizer continuar vivendo, mas também viver após a morte".
Publicado no jornal Diário de S.
Paulo
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