No dia das crianças
No dia das crianças, uma auto-reflexão da minha infância: retardado mental, inofensivo, brincalhão, debochado; quando bem pequeno, montava no cabo de vassoura no quintal da casa do meu avô, e imaginava ser um cavalo.
Assim, quando ia com ele no mercado, galopeava pelas ruas da Vital Brasil, parando em frente ao barzinho de esquina, na subida da rua Senador Vergueiro, quando iniciava um show fazendo meu cavalo relinchar, de modo que o cabo da vassoura, por várias vezes, atingia as pernas dos que estavam por perto, enquanto meu avô pedia desculpas rindo.
Quando isso acontecia, meu avô, mais debochado do que eu, olhava para a pessoa e ainda fingia que estava dando uma chicotada no meu cavalo imaginário para o atingido ver, o que me deixava transtornado.
Não se bate em animais.
Meu cavalo fez época e o nome dele era Araraboia.
Meu avô entrava na minha viagem.
Quando eu pegava a vassoura, ele colava umas fitas de Senhor do Bonfim que tinha a rodo naquela época colorindo o cabo inteiro, No meu peito, colocava medalhas de santos e broches de clubes.
Eram as medalhas das guerras que haviam me condecorado.
A distância máxima que percorri com meu cavalo foi da Vital Brasil até a Moreira César, em Icaraí.
Na volta, pegamos um táxi e perdeu a graça.
Uma vez, meu avô foi jogar carta com os amigos no quintal.
Estava assistindo televisão.
Ele passou, apertou o botão da tv rindo, e perguntou onde estava Arariboia.
Respondi que não queria mais montar naquele cavalo.
Disse que havia crescido.
Ostentei na cara do velho! Ele então me respondeu que já era velho, mas que mesmo assim o que mais lhe impressionava no meu cavalo, naquele momento, era o rosto.
Segundo ele, a impressão que dava naquela manhã era que estava inchado.
Disse que os poucos dentes estavam cariados e sujos, e que, certamente, só a piscina do quintal, naquele dia de sol, poderia esbranquiçar os dentes do bicho.
De repente, começou a dizer que dos cantos da boca do meu cavalo escorria uma "baba bovina" que ele estava limpando com as patas manchando o sofá da sala.
Disse que o animal estava no canto da sala ruminando lembranças de quando eu era pequeno.
Disse ainda que o som que meu cavalo emitia naquele instante, como uma espécia de ronco, contínuo, monótono, eram como pedaços de músicas esquecidas, mas que muitas crianças queriam cantar.
Na época, não entendi essa frase, mas lembro bem dela.
Disse que já estava escutando esse ronco do cavalo que durava duas horas, dando a impressão de que ele estava morrendo.
Perguntei como, sem perceber que estava entrando na onda dele, e ele respondeu que parecia um peixe no chão se debatendo e abrindo os brônquios: foi então que, meio descompassado com a interpretação realística do meu avô, avistei a piscina da sala, o tal Oásis que ele dizia ser capaz de ressuscitar o Arariboia.
Quando saí da sala com a vassoura, a velharada amiga do meu avô gritava em coro: "pule com ele na água, pule com ele! E Tchibum, me joguei na piscina e depois avistei meu avô vindo atrás e jogando na água todos os broches e tudo mais.
Fiquei ali enquanto eles jogavam carteado por mais de três horas.
Rolou um churrascão.
Isso tudo pra dizer (pra quem tem filho pequeno é mais fácil) que nossos cavalos vivem dentro de nós o tempo inteiro, mas asilados nos abrigos e cocheiras da idade, das dores, das dificuldades.
A idade só nos faz tirar a "montaria" do cabo de vassoura.
Acalma-nos, porém, o espírito… O amor, o tempo leva…
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