Chegou em casa
Chegou em casa, abriu as portas, as persianas, as janelas.
Caminhou por entre os móveis, preenchendo os espaços vazios.
Os passos pesavam, seu corpo não conseguia carregar o próprio peso, os pés, frágeis, se retorceriam se pudessem, o cansaço era visível.
Foi até o banheiro, olhou-se e naquele espelho manchado, viu um reflexo que não era seu.
Algo inumano.
Procurou vestígios de felicidade, nenhum.
Amor? Nenhum! Dor? Muita! Solidão? Mais ainda! Subiu as escadas, restejaria se possível fosse, não era.
Eram 3:00 da manhã.
Havia um fulgor desconhecido naquela noite, algo especial ou diferente.
O referente era um inimigo em potencial.
A noite foi feita para os loucos, aos que amam intensamente.
Era seu caso, amava tanto e esquecia de se amar.
Amava a madrugada, o cheiro do conhaque e as taças de vinho manchadas de batom vermelho.
Amava ouvir jazz no tom mais suave possível.
Amava o azul, naquele tom quase preto.
Amava a lua e suas metamorfoses.
Amava a vida, odiava viver.
Olhou sua história por um lado, por outro, por perspectivas mistas e opostas.
As vertentes que se cruzavam no emaranhado de problemas em que tinha se metido.
O amor não correspondido, a traição explícita.
A falta de amigos, a solidão…
Como dizer a alguém que possivelmente ela possui depressão? Não é uma tarefa fácil, ao menos não deveria ser.
Costumo dizer que quando toma-se um papel como esses, o autocontrole é fundamental.
Não queria eu, dizer para aquela doce menina que o que ela via nas manchas de vinho era o seu sangue escorrendo pelas manhãs da camisa.
Que absolutamente todos os seus amigos, eram fruto de sua imaginação, porque ela era estranha demais para se adequar socialmente a qualquer parâmetro significativo existente.
O que é a vida, senão um misto de cores borradas, palavras engolidas e borboletas no estômago, regurgitadas? O problema começa partindo do fato de que, cores misturadas se tornam preto, e quanto mais pigmento, mais escura a cor.
Até seu sangue escureceria, quem dirá, aquela dor? E a ferida só aumentara…
Ela sentou à beira da janela.
As grades de proteção ficaram para trás, afinal, o que ofereceria mais proteção que o próprio perigo? Quando se expõe a ele, nada mais se deve temer, não há do que se proteger.
E ela cantava, entre lágrimas e sorrisos, traçava uma tênue linha entre o real e o imaginário.
O vestido branco manchado nas mangas com o vinho… Voava conforme a dança tecida pelo vento noturno.
Ela estava em pé, alternando os pés pela beirada da sacada.
Um após o outro.
Vamos contar comigo 1, 2, 3… Os pés se chocavam e ela olhava para baixo.
Não tinha medo do escuro, tinha medo da solidão, e até isso já enfrentara.
Não tinha ninguém, não tinha nada.
A lua gritava no céu, e no chão, refletida nos tetos dos carros.
Nada mais fascinante que a lua… Ao final daquela noite, ela se viu leve como um pássaro.
Queria voar, ascender aos céus, e pulou.
Voou.
Encontrou a lua, abraçou-a por toda a eternidade.
A solidão acabou, o medo cessou, ela e a lua, deram adeus à vaidade.
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