Não importava se tinha razão

Não importava se tinha razão, devia me calar.
No meu tempo, ser educado era ficar em silêncio.
Na mesa, não podia emitir som que não fosse da natureza do garfo e da faca.
Criança aceitava, não falava.
Como um bicho doméstico, um galo, um cachorro, um gato, um canário belga.
Encabulava quando raspava a louça, arranhava as rodas ao estacionar no meio-fio do prato.
Meu pai falava sem parar dos negócios, dos vizinhos, do futebol e eu escutava com continência e louvor.
Nunca me passou pelos ouvidos nenhuma pergunta inteligente para fazer, até porque as perguntas inteligentes surgem das bobagens e não corria riscos.
Se as conversas tivessem sido gravadas na época, descobriria que não apareci na própria infância.
Entrava com um "obrigado" e saía no "com licença".
Não questionava os hábitos, preocupado em me ver livre o mais rápido possível daquela cena.
Não sabia como viver para me sentir morto.
Não sabia como morrer para me sentir vivo.
Meus bolsos cheios de bolas de gude para acompanhar as mãos.
Os bolsos do meu pai cheios de chaves para desafiar as mãos.
Os bolsos de minha mãe cheios de pedras do terço para esquecer as mãos.
A sobremesa era sagu ou arroz de leite, que comia com vagar e ódio, já que consistia na mesma merenda da escola.
Passava o dia comendo sagu ou arroz de leite.
A canela em cima do doce me arrepiava de careta, emburricava a respiração.
Me censurava antes da censura, me proibia antes da negação, me cavava antes de ser enterrado.
Pensativo como quem se penteia no espelho.
Prestativo como quem tem culpa por crescer.
Nas saídas em família, permanecia igualmente calado, omisso, aceitando que as pessoas secassem seus dedos no meu rosto em cada encontro.
Quando recebia um elogio público de comportado, o pai sorria, a mãe sorria, e bem que tentava sorrir, mas os dentes eram de leite e logo cairiam.
Nunca levantei a voz.
Falava para dentro, com a cabeça inclinada de cavalo cansado.
Tinha serenidade porque não encontrava outro sentimento para colocar em seu lugar.
Não havia estômago para chegar ao fim da esperança.
Não estava escuro para me defender com vela, muito menos claro para procurar sombras.
Conhecia de cor o ato de contrição, apesar da dificuldade de inventar pecados.
A humildade lembrava covardia, o que explica minha vontade insana de fazer calar esse tempo, o meu tempo de camisa fechada até o último botão.

#tempo#fabriciocarpinejar#razao#silencio#calar 191

Mensagens Relacionadas

Círculos viciosos

Círculos viciosos
Eu lia, mas não sabia ler,
e tudo que eu lia,
porque não sabia,
não fazia sentido
dentro de mim.
Procurei a ponta condutora,
qual um filão (…Continue Lendo…)

#passagem#tempo#victormotta

Nexo

Nexo
Olhando daqui, percebo que pessoas e circunstâncias tiveram um propósito maior na minha vida do que muitas vezes, no momento de cada uma, eu soube, pude, aceitei, ler. Parece-me, agora, que…

(…Continue Lendo…)

#anajacomo#tempo

NÃO DIGAS NADA!

NÃO DIGAS NADA!
Não digas nada!
Não, nem a verdade!
Há tanta suavidade
Em nada se dizer
E tudo se entender —
Tudo metade
De sentir e de ver…
Não diga…

(…Continue Lendo…)

#fernando#gravidez#poesia#famosos#fernandopessoa#poemas#alegria#vida#amor#sofrimento

O Tempo e a transitoriedade de todas as

O Tempo e a transitoriedade de todas as coisas são apenas a forma sob a qual o desejo de viver – que, como coisa-em-si, é imperecível – revelou ao Tempo a futilidade de seus esforços; é o agente pelo …

(…Continue Lendo…)

#desejo#arthurschopenhauer#tempo

Ou estarei apenas adiando o começar a falar

Ou estarei apenas
adiando o começar a falar? por que não digo nada e apenas ganho tempo? Por
medo. É preciso coragem para me aventurar numa tentativa de concretização do
que sinto. É…

(…Continue Lendo…)

#tempo#poemas#clarice#claricelispector#lispector

Mensagem do Meu Anjo - Cicatrizante do tempo

Mensagem do Meu Anjo - Cicatrizante do tempo
O tempo é o maior reparador de erros,
cicatrizante de feridas sejam elas novas ou antigas.
O tempo vai levando dores e aliviando o peso d…

(…Continue Lendo…)

#anjos#paulorobertogaefke#tempo#anjo#poemas#erros